segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O papel marcante no palco

Opera  "Olga"  de Jorge Antunes
                                                              
Em quase 30 anos vivendo a cantar no Teatro Muncipal de São Paulo,  tive a oportunidade de vivenciar vários papeis. Papel   de  mulher da vida, com glamour e luxo em "La Traviata", de mulher do povo, com  pobreza, suspense  e medo em "Turandot", de  cigana com sensualidade  e  alegria em "Carmen", de freira, com  religiosidade e meditação em "Suor Angelica". E assim por diante, em dezenas de óperas ali encenadas.
 Mas o papel , que trouxe em si uma verdade histórica tocante,  foi a de prisioneira  na ópera  “Olga”, de Jorge Antunes! No primeiro ato o coro fazia o papel de funcionários russos datilografando freneticamente num grande escritório. No segundo ato se transformava em  presos polítcos, juntamente com Olga, no Brasil. E no final da ópera, a cena mais impressionante que vivi, o papel  inesquecível, na veracidade e tragédia da prisão e extermínio de tantos judeus na Alemanha,  me remeteu a um passado não muito distante, que deve ser lembrado sempre,  para que não mais se repita.
 Estava vestida com uniforme de grandes listras, estrela amarela no braço,  roupa imensa para que parecesse magra, tôca cor da  pele  para que a cabeça se afigurasse raspada, maquiagem que tornava o rosto abatido, os olhos fundos com olheiras colossais, rugas profundas desenhadas ao redor do nariz e  boca, descalça. Era a desolação em pessoa, o olhar embaçado e triste, o caminhar lento e desesperançado, os ombros caídos, pela dor e sofrimento, o desalento e o medo presentes em cada suspiro. Em fila caminhei com minhas companheiras de infortúnio, adentrando uma grande sala não muito iluminada, soldados das SS fiscalizando nossa direção e obediência,  homens altos e temerosos, de olhar frio e coração de pedra, suástica no braço. E conforme caminhava bem lentamente, uma fumaça vinha ao nosso encontro: era a morte que nos esperava, a morte que seria inalada obrigatoriamente, a morte, quase uma benção,  em meio a tantos sofrimentos, desaparecimentos, abusos, tristezas e humilhações. Enquanto isso Olga entoava sua longa e melancólica  canção, para ao fim, juntar-se à fila e  morrer também.
O interessante é que, na magia do palco, em todas as apresentações, senti-me de fato judia. Descriminada, pelo nascimento. Condenada, sendo inocente. Ignóbil morte prematura, cruel destino. Foi sem dúvida, em tantos anos, o meu papel marcante. Sentia-me oprimida e injustiçada, a cada récita, chorava sem lágrimas, sentia o coração se acelerar, prevendo o que viria a seguir, não tinha forças para tentar reagir, não havia como, o corpo não me obedeceria, um passo após o outro, seguia rumo à morte. Após sair de cena levava muitos minutos para respirar normalmente, levava horas para retornar à realidade – era apenas teatro. Mas ao deitar minha cabeça no travesseiro, já em casa, confortável e alimentada, o peso da história me oprimia o peito, e sabia que no dia seguinte caminharia novamente para a morte na câmara de gás. E mais uma vez sair para a coxia, envolta em angústia e  melancolia.

      O palco nos proporciona estes momentos surpreendentes, quando papeis nos são  dados, e os vivenciamos, como se  os tivessemos experimentado verdadeiramente, não a ficção, não a ópera, não a arte, mas o mundo real em nossas mãos, dando a cada um que ali está, a grande oportunidade de sentir o que nunca se sentiu, de  ver o que não se viu, de andar por  onde nunca se esteve, de se emocionar com os sentimentos genuínos dos  quais apenas ouviu falar, de trazer para a realidade do palco o que  só era vislumbrado através de relatos históricos.



                                                           Eloísa Falcomer
                                                 São Paulo, 12 de agosto de 2011.



Um comentário:

  1. Bárbaro, Elô! Traduziu nas melhores palavras as experiências comuns a todos nós, os atores cantores. E, mais uma vez, um agradecimento especial pelo seu carinho!!! Vera

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